Começa por nos contar que está há uns meses em Portugal. Veio com uma licença de férias de longa duração para visitar familiares e amigos, tendo sido "apanhada pelas circunstâncias extraordinárias" destes dias.
Em entrevista à RTP diz que Portugal tem tido uma resposta positiva no combate à epidemia, "mas também poderia ter estado melhor".
Pergunta: É possível prever uma data para voltarmos à rua, mesmo que com cuidados extra?
Resposta: Respondendo literalmente à pergunta, sim. É possível estimar (uma data) com base em indicadores epidemiológicos e um conjunto de critérios que deverão estar assegurados antes que se comecem a aliviar as restrições.
Primeiro é necessário confirmar que a transmissão do vírus está controlada, o que se pode fazer através da estimativa de um índice de propagação do vírus. O tal ‘R0<1’ de que tanto se fala. Porém, não basta atingir este nível, mas verificar que ele se tem mantido <1 (menos de um) por algum tempo, e que há condições para que assim se mantenha após o levantamento das restrições.
Para tal, conforme recomenda a OMS, há que assegurar que o sistema de saúde tem capacidade para continuar a detetar, testar (muito), isolar e tratar todos os casos de covid-19, e rastrear todos os contatos dos casos confirmados; minimizar os riscos de novos surtos, especialmente em locais como unidades de saúde e lares de terceira idade; gerir os riscos de importação de novos casos; implementar medidas preventivas nos locais de trabalho, escolas e outros locais considerados essenciais para a população (através do distanciamento físico, lavagem das mãos, etiqueta respiratória, uso de máscaras; fornecer equipamentos de proteção aos profissionais de saúde; e assegurar que os cidadãos estão informados, motivados e capazes de continuar a adotar comportamentos responsáveis numa nova realidade.
Em suma, há que assegurar a capacidade de resposta do sistema de saúde na gestão do risco incorrido - que é real - com o aliviar das restrições. Muitas destas medidas já têm vindo a ser implementadas gradualmente, mas poderá demorar algum tempo até que estejam operacionais num contexto de retoma da atividade económica e social.
Imagem: Pedro A. Pina - RTP
Não consigo pronunciar-me exatamente sobre quando estes aspetos estarão assegurados, mas antevejo que o levantamento das restrições tenha de ser gradual e até intermitente e, provavelmente, por regiões e sector de atividade.
Será, portanto, imperativo continuar a monitorizar, a cada passo, o impacto do levantamento das medidas na trajetória da curva epidemiológica para que, se necessário, estas sejam corrigidas atempadamente e, dessa forma, se evite um ressurgimento de casos e fatalidades.
Fala-se muito nesta altura do R0, o índice de propagação do vírus. Pode-nos explicar a lógica deste índice e a partir de que valor é que se torna mais seguro o regresso à vida “normal”.
O R0 é o número básico de reprodução do vírus. Estritamente define-se como o ‘número médio de casos secundários de infeção originados a partir de um caso primário quando este, encontrando-se no seu período infecioso, é introduzido numa população que consiste somente de indivíduos suscetíveis’, isto é, antes que se comece a desenvolver imunidade generalizada e antes de qualquer tentativa de imunização.
Este é um indicador calculado no início de um surto (daí o zero do R), quando toda a população é normalmente considerada como suscetível. Portanto, por definição, o R0 não se modifica. O que varia ao longo da evolução de uma epidemia, tomando como ponto de partida o R0, é o número efetivo de reprodução (Re) do vírus, e é este que nesta altura se estima ligeiramente abaixo de 1, tal como referiu. Na prática, o Re não é mais do que número de reprodução do vírus (R) em tempo real.
O R0 é um indicador muito importante para determinar duas coisas no início de uma epidemia:
1) a probabilidade de um novo vírus se propagar pela população
2) a proporção da população que deverá ser imunizada (por exemplo, através de vacinação, se existir) para que a propagação do vírus seja limitada e a população seja protegida contra futuras infeções.
Para ilustrar o primeiro ponto, se em média cada pessoa que desenvolve a infeção a transmitir a outras duas, o R0 é 2. Se o R0 médio numa população é estimado acima de 1, o vírus tem potencial para se propagar exponencialmente (e quanto mais alto for o valor de R0 mais rápida será a essa propagação). Se o R0 é inferior a 1, o vírus também se propagará, mas de uma forma lenta, até que desaparecerá, sem gerar epidemia.
No que diz respeito ao segundo ponto, para que se previna uma propagação sustentada do vírus (situação que se refletirá no tempo, por um valor de Re<1), a proporção da população que deverá ser imunizada tem de ser superior a (1 – 1/R0) x 100.
A OMS avançou uma estimativa preliminar do R0 do Covid-19 entre 1,4 e 2,5, apesar de estimativas mais recentes apontem para valores mais altos; portanto, se R0=2, mais de 50% da população terá ser imunizada. Porém, sem uma vacina ou cura, outras medidas são necessárias para reduzir o R0 inicial.
Apesar da sua aparente simplicidade e interpretação intuitiva, o cálculo do R em tempo real requere modelos matemáticos complexos e dinâmicos, que, de uma forma geral (e simplificada), equacionam o tamanho da população suscetível, o nível de transmissibilidade do vírus, o tempo durante o qual indivíduos estão infeciosos, e também a velocidade de remoção dos casos infetados da população suscetível, por recuperação ou morte.Todos os países europeus foram inicialmente um pouco complacentes na avaliação do risco de importação deste vírus e das suas consequências após terem soado os primeiros alarmes vindos da China.
Percebe-se assim a necessidade da adoção de medidas de confinamento e distanciamento social, pois só reduzindo consideravelmente o número de contatos que pessoas ainda não infetadas fazem com pessoas (potencialmente) infetadas, enquanto estas estão a transmitir o vírus, se consegue reduzir o R0 inicial e atingir um desejado Re<1. E quanto mais baixo for este valor melhor, porque o Re não é um valor exato, mas sim uma estimativa e, portanto, temos sempre de reservar uma margem de erro.
O valor de 0.7 usado pela Noruega e outros países parece reservar esta margem de segurança, mas este não é um valor universal de referência: cada país tem de o enquadrar nas suas realidades demográficas e sociais e na capacidade dos seus sistemas de saúde.
Gostava ainda de frisar o seguinte. O R é um número médio e, por isso, pode refletir diversas realidades. Por exemplo: uma em que cada pessoa infetada infeta 2 outras; outra em que 49 pessoas infetadas não infetam nenhuma outra (por estarem rigorosamente confinadas) mas uma pessoa infetada infeta 100 outras (é um ‘super spreader’ – como o paciente 31 na Coreia do Sul).
É comum que o R não seja o mesmo em todo um território, portanto, as estratégias de contenção (e o momento do seu levantamento) podem diferir por regiões ou até mesmo localidades.
Finalmente, não importa saber apenas o R, temos de considerar também a taxa de letalidade do vírus, ou seja, a proporção de mortes na população infetada. Isto porque se este vírus fosse muito contagioso, mas não fosse perigoso, não seria muito preocupante, e com certeza as medidas de contenção a adotar teriam sido diferentes.
Imagem: Pedro A. Pina - RTPOlhando para o que aconteceu até agora há quem defenda que as medidas implementadas foram as corretas. Outros dizem que podia ter sido melhor, em comparação com países como, por exemplo, a República Checa. Genericamente - e já vamos ao detalhe - qual é a sua opinião?
Concordo parcialmente com ambas as posições, já que não se excluem mutuamente.
Acho que Portugal esteve (e tem estado) bem nas medidas implementadas, mas também poderia ter estado melhor.
Não necessariamente por comparação à República Checa, mas simplesmente porque todos os países europeus foram inicialmente um pouco complacentes na avaliação do risco de importação deste vírus e das suas consequências após terem soado os primeiros alarmes vindos da China (a 31 de Dezembro de 2019). Não era de todo realístico esperar que o vírus ficasse circunscrito nessa região.
Vamos então ao detalhe. Como e por que é que Portugal escapou à situação italiana ou espanhola? Tem cerca de 1/10 dos casos da Espanha com uma taxa de letalidade de 3 por cento. A letalidade em Espanha rondará os 10 por cento.
Portugal pôde beneficiar da vantagem da epidemia lhe ter batido à porta um pouco mais tarde do que na Itália e Espanha, podendo assim ganhar tempo precioso para se preparar e também para apreciar e aprender com as experiências de outros países (nem que fosse para não cometer os mesmos erros).A população aderiu e empenhou-se em massa no enorme esforço que lhe foi pedido e tem estado a demonstrar uma resiliência e solidariedade extraordinárias
Com essa vantagem, quando confrontado com a epidemia no seu território, Portugal parece ter feito uma melhor leitura da evolução da situação e dos seus riscos, implementando medidas graduais de contenção de uma forma mais atempada e com menos hesitações do que nesses países.
Neste aspeto, Portugal destaca-se claramente pela positiva, pois ao contrário de Espanha o seu frágil serviço de saúde parece ter sido reforçado suficientemente e atempadamente, e não entrou em rutura.
As diferentes capacidades e estruturas de organização dos sistemas de saúde e governamentais (centralizado em Portugal, regionalizado em Espanha), assim como sinais de uma maior coesão social e política em Portugal do que em Espanha provavelmente facilitaram a implementação das medidas de contenção de uma forma mais articulada.
Destaco também a garantia de acesso a cuidados de saúde conferida a todos os residentes (incluindo os migrantes) em Portugal.
Finalmente, mas sem dúvida crucial, a população aderiu e empenhou-se em massa no enorme esforço que lhe foi pedido e tem estado a demonstrar uma resiliência e solidariedade extraordinárias.
Imagem: Pedro A. Pina - RTP
Quanto aos números que refere, é sempre bastante difícil estimar precisamente a taxa de letalidade quando se está no meio de uma nova epidemia. Numa fase inicial realizam-se sempre menos testes e, portanto, detetam-se menos infetados, o que resulta numa sobrestimação da taxa de letalidade pois estes números entram no denominador.
Por outro lado, o desfecho clínico da maioria dos infetados ainda está em aberto. Isto é, não se sabe ainda se e quando vão recuperar (podem decorrer dias ou semanas entre a confirmação da infeção e a cura ou morte), o que resulta numa subestimação da taxa de letalidade.
À medida que se progride na epidemia, a taxa de letalidade vai sendo calculada com base em relativamente mais testes e mais casos detetados de infetados resolvidos (por cura ou morte), aproximando-se de valores mais reais.
Torna-se assim difícil comparar taxas de letalidade quando a cobertura de testes realizados difere entre países e quando estes se encontram em diferentes fases da epidemia. Para complicar ainda mais as coisas, não só a quantidade de testes, mas também quem é efetivamente testado (todos os que revelam sintomas graves e procuram assistência médica? todos os que revelem quaisquer sintomas? todos independentemente de revelarem ou não sintomas?) diferem entre países.
Os critérios usados para a atribuição das causas de morte (por ou com Covid-19?), as características demográficas e sociais das populações, as medidas de contenção adotadas e a capacidade de resposta dos serviços de saúde também não são uniformes entre países e variam no tempo.
Não é portanto surpreendente que as taxas de letalidade variem consideravelmente entre países, sendo geralmente mais elevadas em países com uma menor proporção da sua população testada e/ou com sistemas de saúde que entram em saturação mais cedo durante a sua resposta à epidemia, como a Espanha.
Profissionais de saúde espanhóis numa pausa fazem ioga - Foto: Reuters
Os valores atuais (3.6% em Portugal, 10.4% em Espanha) devem ser considerados como preliminares: as contas definitivas serão feitas no final [mortes/(mortes + recuperados)].
Mesmo que mais ou menos inflacionadas, talvez o mais importante é o que estas taxas de letalidade têm em comum: em todos os países a taxa de letalidade é particularmente mais elevada nos mais idosos (e nos com mais morbilidade). Esta informação é bastante importante para a prevenção de futuras fatalidades e, portanto, terá de ser considerada também nas estratégias de levantamento das restrições implementadas.
Gostava ainda de lembrar o seguinte: os números que referi acima necessitarão de ser complementados ou corrigidos com os números de indivíduos que foram infetados, mas que, por exemplo, por nunca terem desenvolvido sintomas, não chegaram a ser testados.
Apesar de Portugal ter uma taxa de testes realizados relativamente alta (~23.000 por milhão de habitantes), especula-se frequentemente que a proporção de infetados e, portanto, de presumivelmente imunizados na população, é pelo menos 10 vezes superior. Com base nos dados atuais, e usando números redondos de infetados e habitantes em Portugal, cerca de 2% da população [10 x (22.000/10.300.000=0.02)] estariam então presumivelmente imunes, um valor que se situa ainda muito longe dos necessários mais de 50% (ou 5 milhões de portugueses).
Vários países, incluindo Portugal, já estão a preparar ou já efetuaram estudos piloto para avaliar, através de testes serológicos, qual a porção das suas populações que já terá sido infetada mas escapado às estatísticas.
Resultados preliminares na Califórnia e Holanda sugerem valores de apenas 3%, ou seja, também muito longe dos necessários >50%. E muito ainda não se sabe sobre as caraterísticas de imunidade conferida por exposição ao vírus nem o seu prazo de validade.
Percebe-se assim a inviabilidade de estratégias de imunidade de grupo que alguns países e ‘especialistas’ avançaram nas fases iniciais do combate à epidemia. Tal estratégia levanta questões éticas incontornáveis, porque, para deixar o vírus correr livremente na população, e dessa forma desenvolver imunidade de grupo, isso poderia levar não só à rutura da capacidade de funcionamento dos serviços de saúde, mas também a um aumento dramático de vítimas mortais, particularmente entre os mais vulneráveis.As populações mais envelhecidas, como a de Portugal, serão mais suscetíveis às consequências mortais da exposição a este vírus.
Também se negligenciam os danos de saúde potencialmente graves e irreversíveis que pessoas infetadas podem incorrer a médio ou longo prazo, mesmo quando a maioria sobrevive à infeção (simplesmente ainda não sabemos). Citando um colega australiano: “To some, herd immunity may still sound idyllic, but it requires us to sacrifice the vulnerable on the altar of the economy in truly vast numbers”.
Por que é que, mesmo assim, Portugal tem tantas vítimas mortais? Explica-se em parte por sermos o terceiro país da EU com população mais velha? (só a Grécia e a Itália estão acima).
Antes de avançar na minha resposta, gostaria de deixar claro que todas e quaisquer vítimas são vítimas a mais. A dura realidade é que, numa epidemia com estas características (vírus novo com elevada capacidade de propagação e taxa de letalidade, ausência de vacina e cura), vítimas mortais seriam sempre uma inevitabilidade.
Sim, seguramente as populações mais envelhecidas, como a de Portugal, serão mais suscetíveis às consequências mortais da exposição a este vírus. Porém, não acho que tenhamos ‘tantas’ vítimas mortais, já que o uso do adjetivo ‘tantas’ assume, implicitamente, uma comparação, por exemplo, com outras doenças ou com outros países.
Tudo depende como essas comparações são feitas... e muitas têm sido divulgadas nos meios de comunicação social e redes sociais, particularmente no que respeita aos números de infetados e/ou de vítimas mortais entre países. Vou restringir-me às comparações destas últimas.Os gráficos de dados normalizados pelo número de habitantes servem o objetivo de ilustração simplificada de realidades complexas: são ‘giros’, mas não devem ser usados para classificar, por comparação, a prestação dos países na sua batalha contra a epidemia.
É óbvio que comparar números absolutos de vítimas mortais entre países não é muito informativo. No entanto, a normalização destes números por número de habitantes, ou seja, comparar as taxas de mortalidade, também não resolve o problema, como tem sido sugerido, por vezes de forma quase histérica, por alguns.
De facto, estas comparações podem ser ainda mais enganosas, quando mal interpretadas, sob a falsa pretensa de comparabilidade conferida por esta normalização.
Comparações através de gráficos que usam esta métrica, mesmo quando alinhadas no tempo (ex. desde o dia que ocorreu a primeira morte), tendem a favorecer as taxas de mortalidade nos países grandes (leia-se, com muitos habitantes), pois estes números entram no denominador, ignorando as assimetrias que existem dentro de grandes países.
Por exemplo, nestes gráficos a ‘prestação’ da China (~1.3 biliões de habitantes) parece melhor do que a de Portugal (~10.3 milhões). Se comparássemos Portugal à região da China onde a maioria do surto se conteve (Hubei, 58.5 milhões), ou simplesmente à sua capital (Wuhan, 10.6 milhões), cuja população é mais comparável com a de Portugal, a taxa de mortalidade em Portugal é de longe muito mais favorável (numa mesma fase Wuhan registou mais de 3,000 óbitos, Portugal cerca de 800).
Mas mesmo que se encontrem dois países com sensivelmente a mesma população, o denominador não distingue diferenças numa longa e importante lista de outros fatores que afetam a taxa de mortalidade (distribuição etária da população, densidade populacional, distribuição urbana vs. rural, nível de mobilização e tipos de atividades profissionais predominantes, dimensão e constituição típica dos agregados familiares, etc, etc, etc).
Mas há também problemas com o numerador desta taxa, isto é, o número de óbitos por Covid-19. Estes só serão comparáveis se os critérios usados para atribuição da causa de morte forem semelhantes entre países, assim como se todos estes óbitos por Covid-19 forem detetados e contabilizados de igual forma.
Ou seja, também o numerador depende de testes realizados. Por exemplo, até agora, no Reino Unido e na Holanda, só os óbitos ocorridos nos hospitais têm sido testados e contabilizados, enquanto que em Portugal os óbitos ocorridos na comunidade e em lares têm sido também incluídos.
Resumindo, os gráficos de dados normalizados pelo número de habitantes servem o objetivo de ilustração simplificada de realidades complexas: são ‘giros’, mas não devem ser usados para classificar, por comparação, a prestação dos países na sua batalha contra a epidemia.
O nível de mortalidade em excesso que cada país está a registar, ou seja, o aumento no número de óbitos observado em cada semana ou mês desde o início da epidemia comparativamente ao número de óbitos em iguais períodos em anos anteriores, tem sido proposto como forma de captar estas mortes devido a Covid-19 que não têm sido contadas.
É por certo um número grosseiro que inclui, sem as distinguir, as mortes causadas diretamente (confirmadas e não confirmadas), e indiretamente pela epidemia, por exemplo, devido a atrasos na procura de assistência médica ou disponibilidade de recursos para atendimento a pacientes não-Covid), mas não sofre das limitações enumeradas anteriormente.
Em Portugal verificou-se uma tendência de aumento da mortalidade entre Março e Abril. Porém, não excedeu os níveis em picos de gripe observados em anos anteriores. A situação parece mais problemática noutros países tal como informa o European Monitoring of Excess Mortality for Public Health Action (EuroMOMO). De acordo com o seu boletim mais recente, tem-se verificado um excesso considerável de mortalidade coincidente com a epidemia de Covid-19, particularmente nos escalões etários mais velhos, se bem que para já circunscrita a alguns países (Espanha, Itália, Holanda, Bélgica, e Reino Unido).
Finalmente, é talvez importante relembrar que, numa epidemia com estas características, as medidas de contenção visam primariamente evitar um pico enorme de infetados com necessidade de cuidados médicos e hospitalização, nomeadamente em unidades de cuidados intensivos (UCI), num curto espaço de tempo.
Ou seja, o ‘achatar da curva’ visa garantir que estes números não excedam a capacidade de resposta dos serviços de saúde, para que desse modo se possam evitar mortes desnecessárias. Na ausência de tratamentos específicos (e vacina) estas são, e vão continuar a ser, inevitáveis entre alguns infetados. Portanto, provavelmente deveríamos estar a analisar os países com outras métricas, que permitam avaliar o sucesso ou falhas das medidas implementadas face à capacidade dos seus sistemas de saúde.
Em Portugal, pelo lado negativo, tem sido comum comparar a situação nacional com a da República Checa. São realidades comparáveis? O caso checo é um sucesso?
Parte da resposta a esta questão já foi feita acima: sim, em alguns aspetos são realidades comparáveis (dimensão da população, início efetivo da epidemia na mesma altura), mas dificilmente em muitos outros. Como tentei explicar, é muito difícil, se de todo desejável, fazer comparações entre países.
Comparações só seriam justas se o ponto de partida fosse igual. Este não é, claramente, o caso, nem tão pouco estamos em competição. Não temos os mesmos ‘carros’, nem ocupamos a mesma ‘pole position’, para que possamos atribuir o resultado final somente à perícia dos pilotos e equipas de profissionais que os suportam durante esta corrida.
De qualquer modo, com base nos dados disponibilizados pelas entidades oficiais da República Checa, acho que sim, o caso checo pode ser considerado de sucesso. Mas friso ‘com base nos dados disponibilizados’ pelas razões que expliquei anteriormente. Gostaria também de analisar os dados de mortalidade em excesso que, pelo que pude apurar, não foram ainda divulgados neste país, antes de emitir opiniões mais definitivas. De qualquer modo, a República Checa parece ter controlado bem esta primeira onda do surto sem nunca ter comprometido o funcionamento do seu sistema de saúde.
População na República Checa foi desde muito cedo obrigada a usar máscaras na rua - Foto: Reuters
O uso da máscara explica a diferença entre estas duas realidades ou é muito mais do que isso?
Acho que é muito mais do que isso. A República Checa confirmou os primeiros casos de infetados a 1 de Março, Portugal a 2 de Março. O uso obrigatório de máscaras na República Checa foi decretado no dia 18 de Março quando o país tinha confirmado um total de 560 casos infetados (110 novos nesse dia), e ainda nenhuma morte (a primeira registou-se no dia 22). Dos casos confirmados, 49 tinham sido hospitalizados, 5 destes em UCI. O número total de testes realizados até esta data era de 9.402 (1.738 no dia 18).
Quando um vírus se propaga exponencialmente, pequenas diferenças numa fase ainda inicial da epidemia (como as ilustradas nos números acima) amplificam-se sempre no futuro.
A 18 de Março Portugal tinha já mais casos confirmados de infetados (642 no total, 194 novos nesse dia) e 2 mortes registadas (a primeira ocorreu a 16). Dos casos confirmados, 89 tinham sido hospitalizados, 20 destes em UCI. O número total de testes realizados até esta data era de 12.688 (2.458 no dia 18). Portanto, nessa altura o vírus estava já mais disseminado e a propagar-se mais rapidamente em Portugal do que na República Checa.
Considero mais provável que o facto de a República Checa ter adotado outras medidas de contenção (ex. fecho de fronteiras e confinamento domiciliário), ainda antes de Portugal, explica uma maior parte das diferenças que já então, e mais agora, se observam entre os países, do que aquela que poderá ser atribuída à introdução do uso obrigatório de máscaras.
Quando um vírus se propaga exponencialmente pequenas diferenças numa fase ainda inicial da epidemia (como as ilustradas nos números acima) amplificam-se sempre no futuro. Mesmo que ambos os países tivessem adotado as mesmas medidas (uso obrigatório de máscaras) a partir de 18 de Março, essas diferenças não teriam desaparecido. Já estávamos mais atrasados na ‘corrida’.
No entanto, não excluo a possibilidade de que se o uso de máscaras se tivesse generalizado também nessa altura em Portugal tal pudesse ter ajudado a reduzir uma parte da diferença com a República Checa.
Para além disso, um aspeto importante que certamente explica uma maior taxa de mortalidade em Portugal é que o vírus tem vindo a infetar, relativa e progressivamente, mais idosos em Portugal do que na República Checa.
Presentemente (21 de Abril), os 3 grupos etários com mais infetados em Portugal são, por ordem decrescente, 40-49, 50-59 e >80 anos, enquanto que na República Checa os grupos etários mais infetados são 45-54, 35-44 e 25-34 anos.
O facto de este país ter, à partida, uma maior capacidade no seu sistema de saúde para ‘acolher’ a epidemia, ilustrado por uma maior disponibilidade de equipamentos (ventiladores) e camas hospitalares, incluindo em UCI, do que Portugal, terá também contribuído para as diferenças observadas.
Faz sentido esta discussão das máscaras. Ao incentivar o uso de máscaras nesta altura não estamos a passar a mensagem de que está tudo bem e podemos todos sair para a rua?
Acho que a discussão das máscaras está um pouco inflacionada, principalmente quando avançada como a razão pela qual Portugal apresenta ‘piores’ resultados quando comparado com países como a República Checa e outros países do leste Europeu, assim como países asiáticos como a Coreia do Sul, Taiwan, e Hong Kong.
Todos estes países adotaram medidas de contenção (não só o uso obrigatório de máscaras) mais cedo do que Portugal, particularmente aqueles incluídos no chamado ‘milagre asiático’. Reconheceram o risco que se avizinhava muito cedo e ativaram os seus mecanismos de prevenção e emergência, entretanto bem oleados, fruto de lições aprendidas com epidemias anteriores (SARS), ainda antes de se terem registado quaisquer mortes.
Mas não deixa de ser uma medida adicional que devemos acatar, principalmente quando nos estamos a preparar para ‘voltar para a rua’. O facto de haver risco de transmissão assintomática suporta o uso generalizado de máscaras.Só por si, o uso de máscaras não será suficiente, nem deverá substituir nenhuma das outras recomendações que deverão continuar a ser rigorosamente praticadas.
Mas diferentes perceções das vantagens e até motivações por trás deste comportamento (usar as máscaras para nos protegermos e/ou para protegermos os outros de nós?) poderão eventualmente levar a um descurar de outros comportamentos.
Especialistas em comportamento humano poderão por certo avaliar melhor os méritos deste argumento. Mas claramente, só por si, o uso de máscaras não será suficiente, nem deverá substituir nenhuma das outras recomendações (distanciamento físico, lavagem frequente das mãos e superfícies, etiqueta respiratória) que deverão continuar a ser rigorosamente praticadas.
Penso que haverá necessidade de reforçar esta mensagem em campanhas de informação e sensibilização da população, pois não podemos baixar a guardaComo especialista em epidemiologia, o isolamento social – com todo o impacto que isso tem na economia – era mesmo a única solução para Portugal?
Sem dúvida, simplesmente porque a partir do momento em que transmissão se tornou comunitária, só dessa forma se conseguiria achatar a curva, isto é, evitar que muita gente ficasse doente e necessitasse de assistência médica ao mesmo tempo, nomeadamente em UCI.
O sistema de saúde simplesmente não teria capacidade de resposta sem esse travão. Tratava-se, portanto, de uma questão de evitar a rutura do sistema de saúde para que este, e a sociedade em geral, tivessem tempo para se reorganizarem e, dessa forma, conseguirem fornecer os cuidados de saúde a quem deles necessitava, não só devido às complicações causadas pelo vírus, mas também devido às demais doenças e acidentes, que não deixaram de ocorrer.
O que aprendemos com isto? Alguma coisa vai mudar? O mundo estará melhor preparado para a próxima epidemia?
Já aprendemos muito e ainda vamos aprender mais, pois até que uma cura ou vacina estejam disponíveis esta nova fase de gerência dos riscos vai colocar ainda muitos desafios.
Acredito que vamos estar mais bem preparados para lidar, com mais prontidão, com a próxima epidemia, porque ela virá de certeza. Acho que a grande lição desta pandemia é que a nossa saúde depende de todos, mas literalmente de todos neste mundo que é só um.
Tal como todas as grandes crises da nossa história, esta pandemia veio-nos ensinar ou talvez relembrar que o que dantes parecia impossível até é bastante tangível; que o ser humano e as sociedades têm uma enorme versatilidade, criatividade e generosidade no seu comportamento coletivo; e que, quando confrontadas com adversidades inimagináveis, se unem mais do que se dividem.
A sociedade científica internacional, tradicionalmente muito competitiva, está a colaborar e a partilhar conhecimento para o desenvolvimento de tratamentos e vacinas como nunca antes visto. Será também em colaboração, não em competição, que as sociedades e quem as gere terão de operar, a todos os níveis.
As tecnologias têm tido, e vão continuar a ter, um papel instrumental. A comunicação social e redes sociais também.
Esta pandemia veio também expor as falhas das ‘lideranças’ que rejeitam a ciência e cultivam a desinformação e a divisão. Acho que acordamos para o facto de que não é dos interesses individuais e da opinião subjetiva, mas da humanidade e da ciência, e de todos aqueles que a praticam e valorizam, que depende o bem mais essencial da nossa existência - a vida.