EUA. Como começou a Guerra Civil

por RTP
Leah Millis - Reuters

Nos Estados Unidos, há 160 anos que não se falava da guerra civil como ameaça palpável. Hoje, perante um futuro incerto, convém recordar como o país se envolveu numa confrontação que durou quatro anos e causou quase um milhão de mortos.

A guerra civil norte-americana, também conhecida como Guerra da Secessão (1861-1865), não foi desencadeada porque o presidente Abraham Lincoln fosse um abolicionista, e sim porque os Estados do Sul queriam poder estender a escravatura a outros Estados da União e mesmo a territórios estrangeiros, mediante guerras de conquista.
Uma tensão entre dois tipos de capitalismo

A escravatura não era mero vestígio de práticas arcaicas, remanescentes da Antiguidade greco-romana ou da colonização de África, e sim uma forma de exploração do trabalho altamente lucrativa no moderno capitalismo do século XIX. Plantações de algodão da Geórgia, da Carolina do Sul, do Alabama, alimentavam com matérias-primas baratas a indústria têxtil de Inglaterra em tempos de revolução industrial e também dos Estados americanos do Norte.

Os esclavagistas do Sul tinham motivos de peso para acreditarem que o seu modelo capitalista tinha futuro. Nos anos que precederam a eleição de Lincoln, o presidente Buchanan procurou sempre apaziguar os congressistas eleitos por Estados do Sul e, desse modo, alimentou neles a expectativa de que a colonização da costa Oeste ou a anexação de territórios no México e no Caribe pudessem fazer-se sob a égide de uma legislação esclavagista.

O principal partido que dava expressão aos apetites expansionistas dos plantadores de algodão era o Partido Democrático. Mas o recém-criado Partido Republicano defendia os interesses de uma burguesia industrial americana, que não se conformava com o papel de fornecedora de matérias-primas à Inglaterra e que aspirava a desenvolver a sua própria indústria transformadora. Nada tinha contra a escravatura, desde que esta permanecesse confinada aos Estados do Sul e não reclamasse para si própria os novos territórios da costa Oeste.


Foto: DR

As aspirações dos industriais nortistas tinham várias consequências práticas, desde logo a política de fazer colonizar aqueles territórios por pequenos agricultores e não por monocultores de algodão; mas também a de manter intransigentemente a União, para garantir um mercado interno suficientemente amplo para as suas próprias produções; e, enfim, a de levantar barreiras alfandegárias contra produtos concorrentes, que viriam asfixiar no berço uma indústria ainda incipiente.
Kansas: um ensaio local da guerra civil
A tensão entre o expansionismo esclavagista e o da indústria nortista fez-se sentir antes da guerra civil em conflitos localizados e de menor intensidade, muito especialmente no Estado do Kansas. Ao integrar-se na União, este Estado tinha um Governo pró-esclavagista, mas em 1857, quando houve uma tentativa de incluir a escravatura na Constituição, o referendo convocado para o efeito deu o resultado contrário. De nada serviram a intimidação, a violência e a fraude com que uma milícia esclavagista tentou influenciar o sentido de voto do eleitorado.

Mas essa milícia, conhecida como Border Rufians (os "Rufias da Fronteira"), não acatou a derrota eleitoral e lançou uma sistemática guerra de guerrilhas contra os pequenos agricultores que tinham sido a base social da votação contra a escravatura, atacando as suas quintas, queimando-as e por vezes matando os proprietários. 

Do lado dos pequenos agricultores foram-se criando também várias milícias de autodefesa. Entre elas emergiu a lendária personalidade de John Brown, um abolicionista de inspiração religiosa, que viria a lançar um raid em 1859 no vizinho Estado da Virgínia, ambicionando desencadear uma sublevação de escravos. O fracasso do plano levou à captura, julgamento e enforcamento de Brown. 

Tratou-se, contudo, de um episódio que mostrava como a "pequena guerra civil" do Kansas era apenas o prenúncio de um conflito em muito maior escala. Durante a guerra civil, o Estado do Kansas manteve-se ligado à União, embora tenha sido durante muito tempo disputado pela Confederação. 
A inevitável guerra civil

Para evitarem a guerra civil, os republicanos, e em primeiro lugar Lincoln como seu candidato presidencial em 1860, tentaram ainda aliciar os grandes plantadores de algodão a permanecerem na União, como no tempo de Buchanan, oferecendo-lhes um compromisso. Nos termos desse compromisso, a "peculiar instituição" da escravatura não seria tocada nos Estados em que existia, mas também não seria introduzida naqueles em que não existia. Os escravos que fugissem para um Estado livre seriam presos e devolvidos ao seu proprietário (a famigerada lei que dava pelo nome de Slave Fugitive Act).

Mas o compromisso não podia ser satisfatório nem suficiente para a burguesia algodoeira, porque esta precisava de poder colonizar desenfreadamente para compensar o desgaste dos solos e não podia deixar-se envolver na política proteccionista preconizada pelos republicanos, porque aí, inevitavelmente, a Inglaterra iria retaliar levantando as suas próprias barreiras alfandegárias. Para a indústria têxtil inglesa tornar-se-ia mais rentável comprar o algodão na Índia do que na América.

Por outras palavras: os Estados do Sul não podiam, de modo algum, tolerar a substituição de um presidente como Buchanan por outro como Lincoln. A eleição de Lincoln ia tornar a guerra inevitável.
Os acontecimentos precipitam-se
Em 6 de novembro de 1860 Abraham Lincoln foi eleito presidente e logo no mês seguinte, em 17 de dezembro, realizou-se em Columbia, Carolina do Sul, a primeira Convenção da Secessão. Três dias depois a Carolina do Sul declarava a sua independência, seguida em janeiro de 1861 por mais seis Estados sulistas.

Em 8 de fevereiro os novos Estados independentes criaram os Estados Confederados da América, com capital em Montgomery, Alabama. Dez dias depois, a nova entidade estatal passou a ter também um presidente, Jefferson Davis, a título interino, até serem realizadas eleições.

A União não declarou guerra aos separatistas, mas foi deixando claro que o casus belli poderia vir com qualquer apropriação indevida de bens ou instalações suas por parte da Confederação. Esta, considerando a investidura de Lincoln, a 4 de março, como um ponto de não retorno na ruptura entre ambas as partes, decidiu-se um mês depois a ocupar pela força o Forte Sumter, na Carolina do Sul. O ataque sulista, em 12 de abril, iniciou formalmente a guerra entre União e Confederação.

Três dias depois, Lincoln apelou ao alistamento de voluntários e quatro outros Estados que queriam proibir esse alistamento romperam com a União, para se juntarem também à Confederação.

Os meses que seguiram foram de uma sangrenta guerra civil, com avanços e recuos de ambos os lados, e muitas vezes conduzindo a impasses e a prolongamentos cada vez mais mortíferos. Só um ano e meio depois de a guerra ter começado, o presidente Lincoln decidiu, em setembro de 1862, proclamar a libertação dos escravos, que esperava galvanizar pela causa do Norte, garantindo assim uma vitória que estava a revelar-se muito difícil de atingir. Mas a Proclamação da Emancipação ainda irá demorar mais três meses e meio para começar a vigorar, em janeiro de 1863.
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