Varela Gomes: a urgência de "descomemorar" o 25 de Novembro

por António Louçã, Nuno Patrício
Varela Gomes, conversando com trabalhadores da UCP "Pedro Soares", em Montemor, em 27 de Junho de 1975

O coronel Varela Gomes foi a personalidade mais conhecida da lendária 5ª Divisão. Em 25 de Novembro de 1975, fez a derradeira tentativa para defender a revolução. O New York Times logo o acusou de chefiar a revolta dos páraquedistas. Mário Soares viria depois a fazer-se eco dessa acusação.

Varela Gomes salienta neste depoimento o papel que desempenhou a ingerência norte-americana no processo revolucionário português ao longo do ano de 1975, decisiva para que se possa compreender o desfecho ocorrido em 25 de Novembro.

Não houve da parte da Embaixada norte-americana uma ingerência febril e indiscriminada: o embaixador Frank Carlucci, observa Varela Gomes, teve a habilidade de não cair em gestos tão comprometedores como o da Embaixada alemã, em 11 de Março, ao dar asilo a quatro oficiais golpistas, incluindo o general Freire Damião.

Por outro lado, a Embaixada dos EUA manteve uma observação atenta das principais forças políticas e militares e soube sempre distinguir o que era importante do que era acessório.

Em telegramas que recentemente tiveram ampla divulgação graças à plataforma digital Wikileaks, Carlucci mostrava-se especialmente alerta para a actividade da 5ª Divisão, e manifestava o receio de que Varela Gomes, depois de visitar Cuba e de se entrevistar com Fidel Castro, em 25 de Abril de 1975, lançasse em Portugal uma campanha pela criação de CDRs (Comités de Defesa da Revolução), decalcados sobre o modelo cubano.
"O batalhão de comandos foi a primeira unidade a escolher o material que sobrou das ex-colónias e o Jaime Neves ficou com autoridade para contratar pessoal e redefinir a tabela salarial. O que ele fez em grande."
No depoimento agora prestado à RTP, Varela Gomes considera que a preocupação de Carlucci com esse alegado plano da 5ª Divisão resultava também, em boa parte, das campanhas de Dinamização Cultural entretanto em curso.

Depois de uma fase em que a contra-revolução acumulou fracassos, devido a uma série de iniciativas desastradas (Julho e Setembro de 1974, Março de 1975), a passagem da direcção para as mãos de Carlucci dotou-a de muito maior eficácia e consistência.

No depoimento que agora prestou à RTP, Varela Gomes aponta alguns efeitos palpáveis desse ganho de consistência: o desarmamento das unidades militares favoráveis à revolução e o apetrechamento em meios humanos e materiais do Batalhão de Comandos, ao ponto de este quase poder equiparar-se a uma Brigada.

Mas, para além disto, havia os planos de intervenção, debatidos ao nível da NATO e com especial intervenção do ministro britânico James Callaghan. E estes estavam desenhados para diversos cenários, incluindo um de máxima confrontação. A radicalidade do planeamento contra-revolucionário só podia inspirar aos amigos portugueses de Carlucci uma atitude de autoconfiança que havia de manifestar-se claramente na jornada decisiva do 25 de Novembro.

Do lado da esquerda militar e política, pelo contrário, havia uma atitude de estrita obediência à hierarquia. Varela Gomes recorda como a Marinha foi a primeira, nas primeiras horas do dia 25 de Novembro, a declarar essa obediência ao presidente da República, Costa Gomes.

Nomes decisivos da Marinha, como os almirantes Rosa Coutinho e Filgueiras Soares, foram para Belém, para acompanhar o evoluir dos acontecimentos ao lado de Costa Gomes. Com eles foi também o comandante Martins Guerreiro, mentor principal desta atitude de obediência.

De fora, permaneceram o conselheiro da Revolução Almada Contreiras, e o comandante naval do Continente, Vasco Costa Santos, que viriam, ambos, a sofrer uma larga temporada de prisão.

Mesmo um responsável militar tão criticado pelo seu alegado putschismo, como Diniz de Almeida, continuou durante o dia 25 a esperar ordens de Otelo e acabou, em última análise, por obedecer à ordem do general Costa Gomes para se apresentar em Belém."Uma das fantasias era que eu estaria em estreito contacto com o Vasco Gonçalves. A todos os gajos a quem eu telefonei e que me atenderam, lixei a vida, lixei a vida profissional, até a gajos, coitados, (…) que não tinham intenções revolucionárias."

Mas Varela Gomes recorda como Otelo permaneceu durante toda a manhã em casa, a dormir, e como apareceu depois no Copcon, no Alto do Duque, "ensonado", e disposto a acorrer a Belém, ao primeiro sinal  de Costa Gomes. O presidente enviou-lhe esse sinal pela pessoa de Marques Júnior, que Otelo logo acompanhou, apesar das advertências que lhe foram feitas, nomeadamente por Varela Gomes: "Vais ficar preso".

O quadro de derrota completa-se com as indicações dos partidos, incluindo a extrema-esquerda, no sentido de os seus militantes irem para casa. Depois de terem pensado que a revolução era "um dado adquirido", passavam a comportar-se como se a derrota fosse uma fatalidade impossível de contrariar.

Varela Gomes foi um dos oficiais que, ao longo do dia, procuraram encontrar vias para defender a revolução. Dirigiu-se no início da manhã ao SDCI, na Rua Castilho, e seguiu depois para o Copcon, no Alto do Duque. Daí tentou contactar por telefone com várias unidades, a ver o que estariam dispostas a fazer. Vários comandantes evitaram o contacto. Outros, que o atenderam, viram as suas carreiras prejudicadas ou interrompidas.

Uma tentativa de contactar com  Tancos ocorreu por iniciativa de Varela Gomes, já depois de a tropa páraquedista ter desocupado as bases aéreas, para sondar as intenções dessa tropa. A delegação por ele enviada a Tancos regressou convencida de que os páraquedistas não iriam empreender novas operações.

Foram entretanto emitidos mandados de captura, distribuídas e divulgadas fotografias dos militares que se pretendia deter. Varela Gomes começou a ser procurado em todos os lugares onde se presumia que pudesse ter-se escondido, inclusivamente em casa de pessoas que conhecia do tempo da ditadura e que não tinha voltado a ver desde então.

Varela Gomes manteve-se em Portugal, na clandestinidade, até Janeiro de 1976. Nessa data decidiu sair do país, com outros militares procurados. Na véspera da saída, pernoitaram numa casa de abrigo facultada pelo PCP. Seguiram depois para Madrid, onde permaneceram durante um curto lapso de tempo na Embaixada cubana, até lhes ser organizado um voo para Cuba.

Ao fim de um período que calcula em cerca de três semanas, e de algumas pressões que tiveram de fazer os militares exilados, puderam finalmente viajar para Angola, que era desde o início o destino pretendido por eles, para se porem ao serviço da causa da independência angolana, na ocasião ameaçada pela presença de tropas sul-africanas coordenadas com a FNLA. O voo da Havana para Luanda fez-se com escala em Moscovo e no Congo Brazzaville.

Depois, viriam quase quatro anos de exílio, primeiro em Angola, depois em Moçambique, até ser votada em Portugal a Lei da Amnistia, que permitiria o regresso tanto dos vencidos do 11 de Março (Spínola e responsáveis do MDLP), como dos vencidos do 25 de Novembro (o próprio Varela Gomes e Durante Clemente, entre outros).
"Os fugitivos do 11 de março (generais e outros) pediram asilo à embaixada alemã. O que se tira da preocupação deles é que a 5ª Divisão fosse demasiado influenciada pela experiência cubana e que aparecesse num país da NATO, aqui na Europa, uma cópia do sistema cubano.”
Antes de regressar, Varela Gomes enviou uma carta aberta às autoridades portuguesas, afirmando que não ficaria à espera que fosse promulgada a Lei da Amnistia e que se sujeitaria às consequências dessa decisão. Outros, como foi até o caso de Spínola, foram presos no aeroporto e depois libertados.

Varela Gomes relata agora à RTP como foi esperado no aeroporto por uma escolta que devia detê-lo e como recusou a prisão, suscitando a intervenção do conselheiro da Revolução Pezarat Correia. Este foi ao aeroporto propor-lhe uma solução conciliatória: que assumisse o compromisso de se apresentar, passado o fim de semana, na Região Militar de Lisboa para prestar declarações. Com este acordo, aceite por Varela Gomes, se concluíam os quatro anos de exílio resultantes do 25 de Novembro.

Aos 91 anos, Varela Gomes mantém uma inabalável hostilidade ao regime actual, que cognomina de "democracia filofascista". Como pai deste regime, o 25 de Novembro foi, para Varela Gomes, o acto fundador contra-revolucionário, comemorado a justo título pelos beneficiários do regime, e a "descomemorar" obrigatoriamente por todos os que alguma vez projectaram uma sociedade socialista.

Das sucessivas "descomemorações" que nos últimos 15 anos tem animado, Varela Gomes retira pelo menos o saldo positivo de ter passado uma crítica às versões que apresentavam o Conselho da Revolução como o "motor" da transformação democrática do país. Do ponto de vista de Varela Gomes, esse organismo militar foi, pelo contrário, o coveiro da revolução de Abril.
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