Hitler e Trump: descubra as diferenças

por António Louçã - RTP
Peter Morgan, Reuters

A analogia salta à vista e não é inteiramente gratuita. Mas corre o risco de induzir em erro, porque há entre ambos diferenças substanciais, que devem ser cuidadosamente medidas.

Duas diferenças fundamentais dizem respeito à situação interna e ao papel internacional dos Estados Unidos. Trata-se de um país que, ao contrário da Alemanha, não tem um movimento operário organizado e, também ao contrário da Alemanha, não precisa de lutar por um lugar ao sol na chamada “comunidade internacional”.
Um país sem “perigo vermelho”
Ao contrário da Alemanha dos anos 1920, os Estados Unidos do século XXI têm uma classe operária sem sindicatos fortes e sem quaisquer partidos próprios. A classe operária branca votou principalmente em Donald Trump, ao passo que na Alemanha votava, aos milhões, nos partidos social-democrata e comunista.

Na Alemanha de 1933 estava ainda fresca a memória do “perigo vermelho” de 1918-1923, com o efémero governo soviético de Munique em 1919, com o poderoso exército vermelho do Ruhr em 1920 e com os governos socialistas e comunistas da Turíngia e da Saxónia em 1923. Nada disso acontece nos Estados Unidos, onde as memórias sindicais mais importantes remontam aos anos 1930, com as grandes lutas dos teamsters (camionistas).

Mais recentemente, os Estados Unidos viram surgir movimentos de massas importantes, como a luta pelos direitos cívicos e a contra a guerra do Vietname, nos anos 1960-1970. Mas esses movimentos massivos da classe média em caso algum atingiram uma radicalidade que permitisse falar de um “perigo vermelho”, como o que assustava o establishment alemão dos anos 1920.

Alternando entre a cenoura e o chicote, entre a lisonja e a repressão, o regime norte-americano neutralizou ambos os movimentos. O seu destino posterior está condensado na sorte posterior de duas figuras: Martin Luther King, assassinado com provável cumplicidade do FBI, depois canonizado quase à altura dos pais fundadores dos EUA; e John Kerry, protestatário contra a guerra do Vietname, hoje elevado a responsável pela política externa de todas as guerras de Obama.

Mesmo a veleidade de ir mais longe que esses dois movimentos, com o dinamismo dos “Panteras Negras” e com a liderança carismática de Malcolm X, foi rapidamente esmagada no ovo. Símbolos desse esmagamento foram o assassínio de Malcolm X e o encarceramento perpétuo do “pantera negra” Mumia Abu Jamal, que nada mudou sob a presidência do primeiro inquilino negro da Casa Branca.

Movimentos mais recentes, como “Occupy Wall Street” e “Black Lives Matter”, são certamente uma expressão genuína de repúdio pelo capitalismo financeiro e pela violência racista, mas continuaram sempre limitados a pequenas minorias. Enquanto forças sociais não chegaram sequer a atingir o impacto que teve, num plano mais superestrutural, a campanha de Bernie Sanders.

Ao chegar à Casa Branca, Donald Trump não terá portanto, como Hitler, de lançar nenhuma ofensiva em larga escala contra a classe operária – o seu eleitorado mais fiel –, até pela simples razão de esta não estar organizada e não constituir um inimigo político a abater.
Um presidente que ainda tem de cortejar a alta finança
Paradoxalmente, isso mesmo faz de Trump um líder populista com menos ligações orgânicas ao capital financeiro do que Hitler. A falange apoiante de Trump é, nesta fase, um movimento pelo menos tão plebeu como os nazis, e sem ligações equivalentes na alta finança.

Hitler, como ponta de lança contra o comunismo, teve desde cedo o apoio de banqueiros como Kurt von Schröder ou de grandes industriais como Fritz Thyssen, que foram dobrando a parada à medida que ele se tornava, ao longo de dez anos, uma alternativa de poder mais palpável. Depois de chegar ao poder, Hitler sentiu-se na necessidade de mostrar a alguns desses apoiantes da primeira hora que o pioneirismo não lhes dava especiais direitos a influenciar o rumo. Thyssen foi parar a um campo de concentração, embora outros capitalistas se tenham mantido até ao final em estreita colaboração com o nazismo.

Trump, pelo contrário, não construiu a sua alternativa ao longo de dez anos. Chegou, viu e venceu. Há alguns meses, ninguém acreditava que ele ganhasse a investidura republicana contra Ted Cruz. Há alguns dias, ninguém acreditava que ganhasse a presidência contra Clinton.

Sem embargo de financiamentos que obteve junto de grandes evasores fiscais como ele, Trump não era o candidato de Wall Street nem do complexo militar-industrial. A notícia da sua vitória caíu como uma bomba nos mercados e, num primeiro momento, prococou uma descida sensível das cotações em bolsa. Longe de poder mandar Bill Gates, Warren Buffett ou George Soros para um campo de concentração, tratará antes de mais de ganhar-lhes a confiança.

Do mesmo modo, Trump não era o candidato do Pentágono nem da burocracia militar-policial. O FBI pareceu, por um instante, ter urdido uma conjura contra Clinton, mas no último instante deixou cair a máscara e essa conjura transformou-se no seu contrário – um trunfo eleitoral de Clinton, ainda assim insuficiente para inverter o desfecho da eleição.
Um império sem rivais à altura
Tanto a República de Weimar como a Alemanha hitleriana eram regimes políticos de uma potência imperial derrotada na Primeira Guerra Mundial. Os EUA, pelo contrário, são uma potência imperial que emerge da Guerra Fria, vitoriosa e sem qualquer rival no horizonte próximo.

Quando chegou ao poder, Hitler moderou as suas reivindicações territoriais, suspendeu quaisquer referências ao “espaço vital” e mimetizou o seu discurso com o velho revisionismo da diplomacia weimariana, que aspirava a pôr em causa as amputações territoriais que a Alemanha tinha sofrido no Tratado de Versalhes. A principal preocupação de Hitler era ganhar tempo, mostrar-se razoável às potências ocidentais, convencê-las de que poderia ser um dique contra as ameaças revolucionárias, na própria Alemanha e na Europa, e utilizar esse compasso de espera para proceder a um rearmamento em larga escala.

Assim que a evolução favorável desse rearmamento lhe deu alguma margem de manobra, tirou da manga as reivindicações territoriais que até aí mantivera escondidas. A combinação de pressões diplomáticas e ameaças militares foi-lhe permitindo ocupar sucessivamente a Áustria, os Sudetas, o resto da Checoslováquia e Memel. Até ao ponto de viragem que foi a Polónia, pôde utilizar a conjuntura internacional e a sua superioridade militar sobre as vítimas directas para realizar essas invasões sem dar um tiro.

Donald Trump disfruta da superioridade militar de Hitler, e muito mais, sem precisar de levar a cabo nenhuma campanha de rearmamento semi-clandestina. As genuflexões de quase todos os dirigentes internacionais, assim que foi conhecida a sua vitória eleitoral, parecem augurar ao presidente da única superpotência do século XXI uma ampla margem de manobra para redesenhar mapas do mundo a seu bel-prazer e sem dar um tiro. Nesse sentido, dir-se-ia que Trump teria condições para repetir em mais larga escala o que foi a política hitleriana de 1938-1939.

Mas a aparência engana. De mãos dadas com a sua campanha pelo rearmamento, Hitler reintroduziu o serviço militar obrigatório. Com milhões de novos recrutas, tinha condições para proceder a amplas ocupações territóriais na Europa Central e para ambicionar outras tantas, mais adiante, na Europa Ocidental. Mesmo assim, o manpower militar e industrial ia revelar-se o ponto de estrangulamento da sua guerra quando metesse ombros a uma guerra expansionista contra a URSS.

Trump, pelo contrário, não tem qualquer possibilidade de repor nos EUA uma tropa de conscrição. A última grande guerra que fizeram os EUA com serviço militar obrigatório foi a do Vietname e deram-se mal, com a fragilidade política desse tipo de exército. A enorme superioridade militar-tecnológica dos EUA não tem, neste caso, o seu reverso numa capacidade para ocupar territórios que pretenda controlar.
A superpotência que não pode ter "botas no solo"
Com isto não se pretende emprestar qualquer crédito às profissões de fé mais ou menos isolacionistas de Trump. Também Bush emitiu algumas a seu tempo e, mesmo assim, foi ele a empreender as invasões mais aventureiras - e desastrosas - da história recente: Afeganistão e Iraque. Quando Trump lança o slogan "Make America great again" [Voltar a fazer a América grande], não se trata de mera propaganda eleitoral e sim do reflexo de uma pulsão imperial que se sente em declínio apesar da sua incontestada hegemonia inter pares.

Podemos portanto contar com aventureirismos internacionais idênticos ou superiores aos de Bush filho, e devemos levar a sério as declarações de Trump quando parecia levar a brincar a hipótese de utilizar a arma nuclear pela primeira vez desde 1945. O que não devemos antecipar, porque é altamente improvável, são novas guerras seguidas de ocupação.

Trump, a meter-se em aventuras expansionistas, não poderá fazer como Hitler nem poderá ocupar os que vencer. Faltar-lhe-á a infantaria de massas, rainha de todas as batalhas. Deverá contentar-se com a superioridade tecnológica, com os golpes de mão de forças especiais à Abottabad - e nesse sentido prenunciadas já na era de Obama - e, finalmente, com uma nova política externa tendente a estabelecer relações de vassalagem com sátrapas locais. Em vez de tropas de ocupação, deverá haver sempre agentes indígenas e interpostas pessoas ao serviço da superpotência.

Nesse sentido, são também, por vários motivos, extemporâneas quaisquer comparações entre o flirt Trump-Putin e o Pacto Molotov-Ribentropp, de 1939. Trump manifesta a sua admiração por Putin como alguém que contraria com a eficácia possível sublevações na Ucrânia ou na Síria, e que estabelece um autoritarismo doméstico em tudo inspirador para o seu próprio modelo de governação.

Mas a aproximação do nazismo à URSS apenas ocorreu seis anos depois de Hitler chegar ao poder, ao passo que os encómios trocados entre Putin e Trump precederam a própria eleição deste. Quando Hitler estendeu a mão a Estaline para um pacto de não agressão e partilha territorial, fê-lo sob a pressão de circunstâncias que o faziam recear uma guerra entre duas frentes e dialogando com uma potência importante, que considerava inimiga estratégica a ter em conta no futuro. O que Trump tem para oferecer a Putin é o abraço do urso norte-americano a um parceiro subordinado - não certamente um simples sátrapa, mas tão-pouco um interlocutor a tratar em pé de igualdade.
Um racismo com condicionantes específicas dos EUA
Outras analogias mais ou menos superficiais devem ser olhadas com atenção. Trump recorreu durante a campanha eleitoral a uma demagogia racista contra os imigrantes mexicanos, contra a população afroamericana e até contra os muçulmanos que requeiram visto de entrada nos Estados Unidos.

A retórica islamofóbica foi ao ponto de vilipendiar os pais de um militar muçulmano norte-americano que morrera no Iraque, por estes apoiarem a candidatura de Clinton. Neste episódio, era tentador estabelecer um paralelo com os veteranos militares judeus alemães, condecorados na Primeira Guerra Mundial, e que esperaram do nazismo alguma indulgência em atenção a essa folha de serviços - apenas para sofrerem depois uma amarga decepção, e para serem tão deportados e tão exterminados como quaisquer outros judeus.

No entanto, também aqui as circunstâncias são diferentes. Hitler podia reorganizar a Wehrmacht sem militares judeus, mas Trump, se hostilizar permanentemente os muçulmanos, os chicanos e os afroamericanos, não poderá manter um Exército profissional num país que é um melting pot de culturas imigrantes. Bem pelo contrário, a participação dos mais pobres e marginalizados é indispensável para manter esse Exército, que conta precisamente com o estímulo de lhes oferecer um passaporte quando não o têm, ou um estatuto social que doutro modo dificilmente atingiriam.

O racismo de Trump distingue-se também do nazismo na sua modalidade antisemita. O próprio presidente eleito tem-se guardado de dar voz à judeofobia virulenta dos seus apoiantes e tem feito gala em ter laços familiares com o judaísmo. Hitler, pelo contrário, manteve sempre uma pública e assumida hostilidade aos que classificava como judeus, mesmo que o não fossem.

É curioso notar, contudo, que o antisemitismo nazi nem sempre foi inequivocamente antisionista. Em 1938, aquando da anexação da Áustria, segundo refere o historiador israelita Yehuda Bauer, Eichmann desenvolveu contactos com as organizações sionistas austríacas no sentido de ajudá-las a furarem as quotas britânicas de imigração para a Palestina.

As diligências de Eichmann faziam todo o sentido no quadro de uma política nazi de limpeza étnica, que consistia em criar uma Alemanha judenfrei (livre de judeus). Não havendo ainda uma decisão política de deportar e exterminar os judeus, o antisemitismo tinha com o sionismo, por um instante, o interesse comum de promover a partida de judeus para a Palestina. Claro que mais tarde, com a decisão do extermínio já tomada, os planos estratégicos do Afrikakorps de Rommel passaram a incluir também a ocupação da Palestina e a destruição da sua comunidade judaica.

No caso de Trump, não há qualquer declaração convidando os judeus a partirem dos Estados Unidos. Mas há várias a encorajarem a colonização israelita nos territórios palestinianos, sem nenhuma das escassas inibições que até agora lhe tem posto a comunidade internacional. O apoio incondicional de Trump à política de Netanyahu, sem ser explicitamente fundamentado com uma visão dos judeus como indesejáveis nos EUA, não deixa de confortar a visão dos seus numerosos apoiantes abertamente antisemitas - do Ku Klux Klan e muito mais.
Uma misoginia à medida da sociedade de consumo

As mulheres votaram em massa na candidatura de Hillary Clinton, as latinas e afroamericanas mais do que as de raiz anglosaxónica. Mas esse apoio não foi suficiente para inverter uma tendência em que a pauperização de largos sectores da população pesou mais do que as questões de género. As grosserias e fanfarronadas de Donald Trump não o prejudicaram de forma decisiva. O seu desprezo pelas mulheres pode ser comparado com o que marca genericamente os regimes fascistas de meados do século passado.

Os traços específicos do comportamento pessoal de cada ditador fascista ou nacionalista variam consideravelmente. Salazar rodeou a sua vida pessoal de secretismo e nesse aspecto assemelhou-se a Hitler, que tinha muito a esconder, e a Franco, que tinha pouco ou nada. Pelo contrário, Sidónio Pais e Mussolini gostavam de exibir as suas escapadelas. Mas todos tinham em comum uma ideologia que fazia da mulher a fada do lar e, em especial no caso do nazismo, a procriadora duma "raça de senhores".

Donald Trump, com a sua faceta exibicionista e fanfarrona, tem um comportamento pessoal mais aparentado ao de Mussolini que ao de Hitler. Por outro lado, e ao contrário do que era denominador comum desses vários ditadores, a sua misoginia não consiste tanto em querer restringir a mulher à esfera doméstica, mas principalmente em querer reduzi-la a um objecto sexual. Dos concursos de beleza feminina que organizava aos desastrados comentários que emitiu durante a campanha, fica a imagem de uma misoginia actualizada à medida da sociedade de consumo.
Uma incógnita para a relação com a democracia
Finalmente, durante a campanha Donald Trump fez gala de um cinismo sem baias relativamente às instituições da democracia norte-americana, nomeadamente com a sua famigerada declaração de que aceitaria o resultado eleitoral se, e só se, ele lhe fosse favorável. As suas diatribes sistemáticas contra a imprensa e a sua campanha para desacreditar as eleições, quando elas pareciam desenhar-se favoráveis a Clinton, tudo encaixa num padrão de desfaçatez que os fascismos do século passado sempre consideraram imprescindível para promoverem uma agitação que chegasse a toda a gente.

Na Alemanha, esse cinismo teve a sua expressão mais alta na figura de Hermann Göring, que nunca sucumbiu a qualquer tipo de cretinismo parlamentar e que sempre fez do parlamento uma tribuna de agitação popular para destruir o próprio parlamento. Fê-lo depois, encenando ou aproveitando habilmente o incêndio do Reichstag, submetendo aos deputados o Ermächtigungsgesetz, uma espécie de autorização legislativa que constituía verdadeiro cheque em branco para toda a duração do regime e equivalia à autodissolução do parlamento.

Mas, se o nazismo deu o golpe de misericórdia sobre o parlamento escassas semanas depois de chegar ao poder, não pode dizer-se que esta seja uma lei de ferro de qualquer ditadura. O fascismo italiano teve de conviver durante vários anos com um parlamento multipartidário e só depois do assassínio de Mateotti encontrou a forma de se livrar desse parlamento.

Apesar da sua óbvia tendência para tomar decisões de forma autocrática, passando por cima de qualquer enquadramento orgânico, Donald Trump não tem, para já, motivos para querer desfazer-se de um Congresso em que o seu partido mantém um peso incontornável - embora, durante a campanha, tenha parecido que poderia querer desfazer-se do próprio partido. Ao contrário de Göring, não é de prever que ele deite ou deixe deitar fogo ao Capitólio.

Há ainda a questão das milícias mais ou menos difusamente espalhadas pela "América profunda" e que ameaçavam produzir desacatos se o veredicto das urnas fosse desfavorável a Trump. E há a Ku Klux Klan, que lhe concedeu um certo apoio durante a campanha.

Nenhum destes dois fenómenos pode ser confundido com as SA (Secções de Assalto) hitlerianas. Estas obedeciam disciplinadamente à direcção do partido, o que não parece suceder em nenhum dos dois casos citados. Em ambos haverá uma simpatia por Donald Trump, baseada também no apoio que este sempre dispensou ao armamento dos cidadãos. Mas tanto as ditas milícias como a Ku Klux Klan parecem ter uma agenda própria, sem qualquer linha directa com instruções do líder populista agora eleito.

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