Presidente da República veta Estatuto Político e Administrativo dos Açores

por Carlos Santos Neves, RTP
"O exercício dos poderes dos diversos órgãos de soberania é realizado no quadro da Constituição, não podendo ficar à mercê da contingência fortuita da legislação ordinária" André Kosters, Lusa

O Presidente da República vetou esta segunda-feira o Estatuto Político-Administrativo dos Açores. Cavaco Silva considera que duas das normas do diploma comportam um “sério risco” para “os equilíbrios político-institucionais”.

Numa mensagem remetida à Assembleia da República, Cavaco Silva sublinha que “o diploma em causa, ainda que expurgado de inconstitucionalidades de que enfermava, continua a possuir duas normas – as do artigo 114 e do artigo 140, n.º 2 – que colocam em sério risco aqueles equilíbrios político-institucionais”.

Pela segunda vez, Belém devolve à Assembleia da República o Estatuto Político-Administrativo dos Açores. No espaço de quatro meses, os deputados são chamados a debater o diploma por três ocasiões.

O Presidente da República lembra que o país ficou a conhecer as suas “objecções de fundo” no Verão, quando devolveu a primeira versão do diploma à Assembleia da República, na sequência da declaração de inconstitucionalidade de oito normas por parte do Tribunal Constitucional.

“Em devido tempo, entendi ser meu dever assinalar ao país que seria perigoso para o princípio fundamental da separação e interdependência de poderes, que alicerça o nosso sistema político, aceitar o precedente, que poderia ser invocado no futuro, de, por lei ordinária, como é o caso do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, ser vir a impor obrigações e limites às competências dos órgãos de soberania que não sejam expressamente autorizados pela Constituição da República”, assinala o Chefe de Estado.

Precedente “grave e inadmissível”

Argumenta o Presidente que as disposições constitucionais saem fragilizadas com o artigo 114 do Estatuto, que obriga à audição dos órgãos de governo regional quando a Constituição vincula o Chefe de Estado a ouvir apenas o Conselho de Estado e as forças políticas com representação nas assembleias legislativas das regiões autónomas.

“Impor ao Presidente da República, através de lei ordinária, a audição de outras entidades, para além daquelas que a Constituição expressa e especificamente prevê, significaria criar um precedente grave e inadmissível no quadro de um são relacionamento dos órgãos de soberania entre si e destes com os órgãos regionais”, insiste Cavaco Silva.

No entender do Presidente, está em causa “uma questão de princípio e de salvaguarda dos fundamentos da República no que diz respeito à configuração do nosso sistema de governo”.

Cavaco Silva ressalva que “a não promulgação do diploma em apreço não reflecte qualquer juízo negativo sobre o modelo autonómico acolhido na Constituição da República Portuguesa e concretizado no presente Estatuto, agora expurgado de diversas inconstitucionalidades que antes o afectavam”.

“Antes de qualquer apreciação de natureza jurídica sobre a matéria, admitir a possibilidade de impor tal vinculação ao Presidente da República seria admitir a violação de princípios fundamentais da arquitectura político-institucional do Estado Português”, reforça o Presidente.

Cavaco volta a socorrer-se da Constituição para propugnar que o exercício das competências dos órgãos de soberania “não é susceptível de alteração ou compressão por simples lei ordinária”.

“Considero que o funcionamento da democracia portuguesa e do nosso sistema de governo assenta numa regra essencial, que não pode ser posta em causa: o exercício dos poderes dos diversos órgãos de soberania é realizado no quadro da Constituição, não podendo ficar à mercê da contingência fortuita da legislação ordinária”, sustenta Cavaco Silva.

”Objecção de princípio”

Na mensagem enviada aos deputados, o Presidente aponta ainda uma “objecção de princípio” relativa ao número 2 do artigo 140 do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, nos termos do qual o Parlamento limita o poder de iniciativa de legislação dos deputados e grupos parlamentares na revisão do diploma.

No futuro, a Assembleia da República verá os seus poderes de revisão circunscritos às normas que a assembleia legislativa regional quiser ver alteradas.

“A Assembleia da República procedeu a uma inexplicável autolimitação dos seus poderes, abdicando de uma competência que a Constituição lhe atribui e lhe impõe enquanto assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”, argumenta Cavaco Silva, para logo retomar o alerta para o cenário de “graves problemas para a coesão nacional”.

“Trata-se de uma limitação de poderes de um órgão de soberania feita à margem da Constituição, o que é manifestamente inadmissível do ponto de vista do normal funcionamento das instituições da República”, afirma.

“Num tempo de grande incerteza, como o demonstra a actual crise financeira internacional, será prudente e razoável a Assembleia da República onerar de tal forma o poder de iniciativa secundária dos deputados que venham a ser eleitos no futuro?”, pergunta o Presidente.

Quatro meses

A 31 de Julho, numa declaração ao país, o Presidente da República avisava que o novo Estatuto dos Açores lançava uma sombra sobre o princípio da separação de poderes e colocava mesmo em causa as competências dos órgãos de soberania instituídos na Lei Fundamental do país.

No início desse mês, Belém pedira a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma. Oito normas mereceriam o chumbo do Tribunal Constitucional.

A Assembleia da República reapreciaria o Estatuto no final de Setembro, procedendo à correcção das oito normas consideradas inconstitucionais e a uma reformulação do artigo 114, libertando o Presidente da obrigação de auscultar, expressamente, o presidente do Governo Regional e os grupos parlamentares regionais no quadro de um processo de dissolução da Assembleia Legislativa.

O artigo 114 passou a estipular que os órgãos de governo regional “devem ser ouvidos pelo Presidente da República antes da dissolução da Assembleia Legislativa e da marcação da data para a realização de eleições regionais ou de referendo regional”.

A nova versão excluiu ainda a obrigação de audição nos processos de nomeação ou exoneração do representante da República na região autónoma.

A Assembleia da República aprovou a 25 de Setembro, por unanimidade, a segunda versão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores.

Caso o Parlamento volte a adoptar o diploma por maioria absoluta – os votos favoráveis dos 121 deputados socialistas serão suficientes -, Cavaco Silva será obrigado a promulgá-lo no espaço de oito dias após a recepção.
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