O homem que Portugal quer ver no topo das Nações Unidas foi esta terça-feira condecorado por Cavaco Silva. Em Belém, António Guterres recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, com o Presidente da República a focar o discurso na ambição de ver o antigo governante suceder a Ban Ki-moon. O tema ficou arredado do agradecimento de Guterres, que através de um longo elogio a Portugal deixou clara a deceção perante a resposta europeia ao drama dos refugiados.
Em Belém, Cavaco foi o mestre de cerimónia, cabendo-lhe a "honrosa" missão de colocar uma faixa laranja em António Guterres. Por outras palavras, de o condecorar com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, um mês após o ex-primeiro-ministro ter cessado funções como alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados.
Uma condecoração destinada a quem tenha lutado pela “dignificação da pessoa humana e pela causa da liberdade”. Entregue a Guterres porque “é muito difícil encontrar outra personalidade que mais tenha lutado a nível mundial pela dignificação da pessoa humana", defendeu o Presidente.
Aliás, no tradicional discurso que antecedeu a condecoração, Cavaco não poupou nos elogios: ao trabalho de Guterres no ACNUR, às funções que desempenhou em Portugal, ao legado que este deixa nas Nações Unidas.
O discurso foi dirigido a “uma voz respeitada e ouvida em todo o mundo”. A voz que o ainda Presidente quer ver no topo das Nações Unidas.
“António Guterres, indiscutivelmente, tem o perfil, a experiência e os conhecimentos para desempenhar o mais alto cargo do sistema das Nações Unidas. Esperamos e desejamos que tal seja reconhecido pelos países da comunidade internacional”, proferiu Cavaco.
“Tem todo o apoio de Portugal. Tem o apoio generalizado dos portugueses”, constatou o Chefe de Estado.
António Guterres também quer chegar ao cargo mais alto das Nações Unidas, mas sabe que não lhe basta o apoio de Portugal para o conseguir. Não obstante, não era esse o objetivo da visita a Belém e a candidatura ficou fora do seu discurso.
Já condecorado, o ex-chefe de Governo mostrou-se “muito sensibilizado” pelo gesto, agradeceu “as palavras tão carinhosas e gentis” de um dos seus anteriores rivais políticos. Passou ao cerne: o elogio e o orgulho em ser português e a crítica à atitude europeia perante a crise dos refugiados.
"Reconfortante olhar para Portugal"
Como alto-comissário, Guterres garante que fez o melhor que pôde por “aqueles que são as mais vulneráveis das vítimas do perigoso mundo em que vivemos”. Uma missão que serviu para reforçar o orgulho em Portugal.
Portugal é o país sem medos para Guterres. Não que a xenofobia não exista, mas onde o ex-líder socialista diz que ser xenófobo ou populista nunca deu votos a ninguém. Um facto que honra o ex-chefe de Governo.
O ex-primeiro-ministro apresenta-se orgulhoso do país que outrora governou e lamenta não conseguir ter o mesmo sentimento em relação “a esta Europa que não foi capaz de se unir em solidariedade” perante a crise de refugiados.
“Vemos Estados muito mais ricos do que nós onde prolifera a intolerância, os medos, as ansiedades, por vezes mesmo manifestações de xenofobia. Onde há como que uma procura de uma identidade ilusória perdida do passado”. Uma identidade que lembra a Guterres “a memória trágica das campanhas da pureza da raça”.
Em Belém, Guterres contrastou a “grande desilusão” que assume ter sentido pela Europa com o orgulho na pátria lusa. Guterres sabe que muitos passaram por dificuldades, mas não tem dúvidas de que Portugal é “hoje muito diferente e melhor do que o Portugal de antes da revolução”.“A Revolução de Abril é uma lição admirável para o mundo. Fomos capazes de substituir um regime sem efusão de sangue, fomos capazes de reformar o Estado sem o destruir".
Recorda que o fim de muitos regimes ditatoriais permitiu ver o que se escondia atrás de regimes aparentemente fortes e a dureza dos conflitos que se seguiram. Também aqui, a Revolução dos Cravos honra Guterres.
“A Revolução de Abril é uma lição admirável para o mundo. Fomos capazes de substituir um regime sem efusão de sangue, fomos capazes de reformar o Estado sem o destruir, de criar as condições para uma sociedade civil florescente e pujante”, elogiou.
Fomos capazes “de nos reencontrarmos connosco próprios nas fronteiras europeias tradicionais, ainda com a capacidade de acolher cerca de 700 mil retornados das antigas colónias e de nos abrirmos, pela primeira vez em alguns séculos, à imigração”.
Para Guterres, o país foi capaz de tudo sem ter “uma crise de identidade”.
“Não há nenhuma discordância sobre o que somos como Portugal”, apontou como grande privilégio. Terminaria o discurso por deixar claríssima a crítica que o seu discurso carregava.
“Quando olho para essa Europa é profundamente reconfortante olhar para Portugal”, terminou. Mereceu as palmas dos presentes, entre eles António Costa e Cavaco Silva.
No exterior, perante a curiosidade dos jornalistas, falou mesmo da “grande desilusão” que significou a gestão da crise dos refugiados para aquele que se afirma um “europeísta convicto”. Rejeita, no entanto, que o Velho Continente, que diz estar carregado pelos “valores humanistas mais importantes”, seja egoísta e coloca a culpa nas lideranças políticas.
Algumas das quais terá necessariamente de conquistar, se quiser ter uma sólida oportunidade de suceder a Ban Ki-moon.
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