Sem maiores surpresas, Donald Trump revelou-se como o anti-herói de 2017. Em menos de um ano de administração, destruiu grande parte do legado de Barack Obama, tanto a nível interno como externo.
O seu discurso e políticas significaram uma injeção de testosterona na política internacional, graças ao seu estilo agressivo, às vezes incendiário. Usando o twitter como púlpito, local de bullying e birras, disparou em todas as direções, de atores a jornalistas, juízes a chefes de estado; insultou, descredibilizou, ameaçou; publicou vídeos racistas e islamofóbicos.
Mas não só a sua retórica foi belicista, imprudente, errática e conflituosa, também as suas ações. Este ano foi pautado pelos bombardeamentos norte-americanos na Síria e Afeganistão; os passos atrás no acordo nuclear com o Irão e na estabilização das relações bilaterais com Cuba; as ameaças de intervenção militar na Venezuela e de “destruição total” da Coreia do Norte.
Na realidade, as tensões e enfrentamentos verbais com o regime de Kim Jong-un tornaram o impensável possível: décadas depois do fim da Guerra Fria, voltou a pairar sobre o mundo o espectro de uma guerra nuclear.
No seu legado, pode incluir-se ainda a gravíssima e irresponsável exclusão dos Estados Unidos do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, colocando em risco a sua sustentabilidade e o cumprimento das suas metas; a tentativa de desmantelar uma das políticas mais emblemáticas e significativas de Obama a nível interno, o Obamacare; o veto migratório a países muçulmanos, que procurou tornar o seu notório racismo e xenofobia em política pública.
Neste longo rol de trevas com que pintou as manchetes dos jornais internacionais, o último episódio foi reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, deitando mais gasolina ao sempre explosivo cenário do Médio Oriente.
Tendo tido como uma das mais importantes bandeiras da campanha eleitoral a construção de um muro na fronteira com o México, Trump erigiu não só muros físicos, mas também políticos e identitários. Aprofundou as fronteiras entre raças, religiões e nações; promoveu visões maniqueístas e primárias do mundo; semeou e explorou o medo, o ódio, o preconceito e o terror. O mundo ficou mais perigoso. E restam pelo menos mais três anos deste pesadelo na Casa Branca...
Acontecimento do ano: a crise permanente e suspensão da democracia na Venezuela
Polémico como o modelo político que instaurou, Hugo Chávez foi, sem a menor dúvida, uma das grandes figuras internacionais das últimas décadas. Foi o rosto mais visível e figura de proa da “onda rosa” que cobriu parte da América Latina na década passada, estendendo-se a países como o Brasil, o Equador e a Bolívia. Representou a possibilidade de chegar ao poder e construir um sistema socialista pela via eleitoral, tendo ganho sistematicamente as eleições a que se apresentou ao longo da sua vida.
O chamado “Socialismo do século XXI”, cujo balanço é dual e controverso, deixou elementos políticos importantes, desde os esforços de redistribuição da riqueza, processos de democracia participativa e promoção de programas sociais de habitação, saúde, alfabetismo e educação. No entanto, caiu também em tendências populistas e cometeu muitos dos mesmos erros do socialismo do século XX.
Como com todas as figuras carismáticas, a sua sucessão foi problemática. Nicolás Maduro carece do encanto, capacidade retórica e inteligência política que se reconheciam em Chávez. A base social, política e eleitoral do Chavismo foi-se, assim, progressivamente deteriorando.
A isto acrescentou-se um factor determinante para a mudança do cenário político na Venezuela – a caída abrupta do preço do barril de petróleo a nível internacional cortou a maior fonte de rendimentos do regime bolivariano e suas políticas sociais, pondo a nu as deficiências do seu modelo económico rentista.
A economia venezuelana ficou de rastos: contração do PIB, supermercados desabastecidos, inflação em níveis astronómicos, filas intermináveis para comprar pão ou ir ao multibanco, empobrecimento e emagrecimento da população... Uma crise económica transformou-se numa crise social e política.
A reação do governo de Maduro foi brutal. O que lhe faltava a Maduro em carisma e capacidade de liderança começou a compensar em repressão, exclusão e centralização do poder. 2017 marca o ano em que a Venezuela viveu num estado de crise permanente e em que a institucionalidade democrática foi desmontada.
Suspenderam-se eleições, destituíram-se juízes, perseguiram-se e prenderam-se figuras da oposição, militarizou-se o regime, desrespeitou-se o princípio de separação de poderes, reprimiu-se violentamente manifestações, tratou-se a cada crítico ou opositor como “fascista” ou “lacaio do imperialismo”.
Hoje a Venezuela vive uma espécie de processo autoritário em curso. Não tendo começado esta tendência e deriva unicamente com Maduro, nem podendo imputar-se-lhe toda a responsabilidade da crise, é a grande figura da “caudillização” do regime. A criação de uma assembleia constituinte “fantoche”, que se substitui ao antigo parlamento, dominado pela oposição, e assume poderes legislativos, deu a última estocada ao que restava das instituições democráticas.
O sonho de socialismo converteu-se em pesadelo. Com uma economia em frangalhos, crise humanitária, violência e dezenas de mortes nas ruas, isolamento internacional, polarização política, uma oposição radicalizada (às vezes, também violenta e pouco democrática), o cenário de uma guerra civil não parece tão longínquo. Continuaremos certamente a ouvir falar da Venezuela no próximo ano, provavelmente não pelas melhores razões.