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UE: um projecto suspenso

por Filipe Vasconcelos Romão, comentador de Política Internacional da RTP e da Antena 1
François Lenoir - Reuters

As primeiras três semanas da caótica presidência de Donald Trump exerceram um forte efeito de alienamento em relação aos muitos e complexos temas que ocuparam a agenda internacional durante 2016. Quem nos leia ou oiça desde fora da Europa dirá que superámos todos os problemas enfrentados nos últimos oito anos e que temos na nova etapa norte-americana uma oportunidade para reafirmar a União Europeia (UE) no quadro internacional. Alguns analistas têm afinado por este diapasão, procurado descortinar no actual caos e nas tentações proteccionistas e isolacionistas de Donald Trump vazios passíveis de ser ocupados pela UE.

A expectativa poderia fazer sentido, caso a Europa atravessasse um momento de estabilidade como não vive desde a última década do século XX. Nos anos 90, a UE protagonizava um debate político e intelectual muito marcado pela clivagem entre federalistas e soberanistas, entre os que defendiam a moeda única e a abertura de fronteiras e os que procuravam preservar os poderes do Estado nestas e noutras matérias. Este debate projectava-se nas prateleiras e expositores das livrarias, com vasta produção de políticos, diplomatas e académicos sobre o tema.

A crise das dívidas soberanas, as consequências sociais das alterações do modelo produtivo (globalização e deslocalização da indústria) e do envelhecimento da população deterioraram a boa imagem de um projecto assente no Estado social e no incremento do nível de vida da população. No limite, existe um sentimento patriótico (ou até nacionalista) subtil entre os cidadãos que faz com que tudo se possa perdoar a um Estado, ao seu Estado, por muito que este os destrate e os obrigue a sacrifícios. A UE não goza desse privilégio e dessa margem de tolerância. À UE tendemos a nada perdoar.

Por tudo isto, o debate europeu incide hoje sobre o que ocorre dentro dos Estados que pertencem à União e não sobre a União em si mesma. Nunca como hoje, eleições legislativas e presidenciais em França, na Holanda ou na Alemanha tiveram tanta importância e constituíram autênticas provas de fogo para um projecto que sempre foi muito mais do que a soma das suas partes. Este “regresso” do Estado serve de combustível não só a novos partidos extremistas e populistas, mas também a derivas radicais de partidos ditos moderados.

Há vários exemplos claros, à direita e à esquerda, desta transformação. No Reino Unido, o Partido Trabalhista, com uma liderança radical, não consegue estancar a sangria de votos nas sondagens nem a perda de deputados em eleições intercalares; já o Partido Conservador deixou-se contaminar pelo discurso do UKIP e impulsionou uma saída da UE que nem o próprio líder, David Cameron, previu. Em França, a ala esquerda do Partido Socialista conquistou a candidatura presidencial, mas só conseguirá passar à segunda-volta caso se funda com a Frente de Esquerda, que inclui comunistas e radicais antiglobalização; o gaullista Fillon, caso mantenha a sua candidatura, opta abertamente por um discurso anti-imigração parcialmente decalcado do da Frente Nacional.

Em resumo, o debate político sobre a União Europeia é, hoje, o debate sobre o que ocorre dentro dos países da União Europeia. O projecto europeu não está dependente, como se chegou a pensar que poderia vir a estar, da vontade de uma cidadania europeia que teima em não emergir, mas da soma de vontade de múltiplas cidadanias nacionais com interesses muito diversos e, por vezes, incompatíveis entre si.
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