Há 80 anos começava a guerra civil espanhola, com repercussões em Portugal

por RTP
Foto de Agustí Centelles, mostrando como uma milícia operária usa um cavalo morto como barricada DR

Não é apenas um preconceito eurocêntrico que situa o início da Segunda Guerra Mundial em 1939: nesse ano, não só a guerra já tinha começado na distante Manchúria, mas também tivera um prelúdio sangrento na Península Ibérica. Os três anos da guerra civil espanhola abalaram a Europa inteira e, com mais forte razão, tiveram profundas repercussões em Portugal.

O Portugal salazarista esteve profundamente envolvido na origem da guerra civil vizinha, nas vésperas de esta ser desencadeada e, de forma decisiva, nos primeiros tempos do conflito. Apoiou o levantamento nacionalista com fornecimento de material, facilidades para o trânsito de combatentes e prestação de serviços diplomáticos ao governo de Burgos, antes de este começar a ser reconhecido.
Um covil de conjuradosEm 18 de Julho de 1936, quando eclodiu a sublevação militar contra a República, o chefe da conjura, general Sanjurjo, estava exilado no Estoril. Juan Antonio Ansaldo, um aviador monárquico e ligado ao fascismo italiano, veio buscá-lo numa pequena avioneta. Deveriam partir para Burgos, onde o general assumiria o comando do movimento.

Mas o embaixador da República em Lisboa, Claudio Sánchez-Albornoz, pressionou o Governo de Salazar a não permitir a partida de Sanjurjo. Salazar não queria, logo nos primeiros dias, tomar partido por um golpe de Estado que estava a sofrer duros revezes e fez saber ao séquito de Sanjurjo que não poderia autorizar a avioneta a partir do aeródromo de Alverca. Mas logo teve o cuidado de acrescentar, de forma sibilina, que nada tinha a ver com o que se passasse em aeródromos particulares.

Sanjurjo optou então por partir de um pista improvisada no Estoril e tratou de fazê-lo logo em 20 de Julho. Mas, por a avioneta estar demasiado carregada, ou por outro motivo, a descolagem correu mal e o aparelho despenhou-se. Sanjurjo morreu e o piloto, Ansaldo, ficou gravemente ferido. Era preciso encontrar outro líder para a sublevação.

Entretanto, Portugal também estava na rota de um outro general conjurado, Francisco Franco, que comandara as tropas marroquinas e que a República enviara para as Canárias, com o objectivo de afastá-lo dos centros da conspiração. Para obter a decisiva participação das tropas marroquinas no golpe, Franco teria de viajar das Canárias para Marrocos. Fê-lo no avião Dragon Rapide, que partiu de Inglaterra, fez escala em Lisboa e foi buscá-lo às Canárias.

Mas a morte de Sanjurjo no Estoril alterou o papel destinado a Franco. De líder das tropas marroquinas, viria a tornar-se o chefe do "levantamento nacional" - passando à frente de outros conspiradores mais da primeira hora do que ele próprio, em parte graças à sua habilidade intrigante, numa outra parte graças à patente de general de divisão que era superior à desses conspiradores."Dragon Rapide" foi apenas o começo
Mas, depois do problema de colocar Franco em Marrocos, colocava-se o problema de colocar as tropas marroquinas na Península e o problema de abastecê-las para uma campanha que, afinal, se anunciava longa.

A transferência era decisiva, porque o golpe de Estado tinha fracassado nos principais centros industriais de Espanha - desde logo Madrid e Barcelona. Milícias operárias improvisadas tinham levado de vencida os conspiradores e as suas tropas. Generais com uma posição fundamental na conjura, como Goded, foram fuzilados. Sem a intervenção das tropas de elite marroquinas, o golpe estava condenado a perder rapidamente os poucos centros urbanos que conseguira capturar.

O problema, contudo, era que o transporte por mar das tropas marroquinas fora inviabilizado. Os oficiais da Marinha ajuramentados com a conspiração tinham sido presos ou mortos pelas suas tripulações. A Marinha permanecia leal à República.

A ponte aérea que trouxe as tropas marroquinas para a Península foi organizada sem intervenção portuguesa. Johannes Bernhardt, um aventureiro nazi residente em Marrocos, voou para a Alemanha a pedido de Franco, saltou sobre toda a burocracia nazi e foi visitar Hitler, que assistia a um festival de ópera wagneriana em Bayreuth. Interrompeu-o, expôs-lhe a situação desesperada dos "nacionalistas" e pediu-lhe ajuda.

Hitler mandou fazer a ponte aérea, de Marrocos para Sevilha, uma das poucas cidades importantes que ficara nas mãos de um general fascista, Queipo de Llano.
Uma retaguarda logística dos "nacionais"
Mas o abastecimento teria de chegar-lhes através da fronteira portuguesa. Por isso era tão urgente para as tropas marroquinas tomarem Badajoz e por isso lhe atribuíram tal grau de prioridade e levaram a cabo a conquista da cidade no meio das maiores atrocidades.

As atrocidades foram descritas pelo enviado especial do "Diário de Lisboa", Mário Neves, que conseguiu fazer passar sob o nariz duma censura momentaneamente desatenta uma descrição fiel dos desmandos da soldadesca marroquina. A reportagem de Mário Neves tornou-se, a nível internacional, uma referência para o jornalismo sobre a guerra de Espanha e uma das primeiras denúncias fundamentadas do carácter em larga medida genocida que assumia a campanha dos "nacionais".

Tornaram-se conhecidas as execuções de prisioneiros republicanos na praça de touros de Badajoz. O comissário informalmente designado por Salazar para organizar o apoio ao bando "nacional" era o industrial conserveiro Sebastião Ramires. O grémio dos industriais conserveiros notabilizou-se por organizar excursões a Badajoz, em que a principal atracção turística era a execução dos prisioneiros republicanos.

Através da fronteira de Elvas-Badajoz começou entretanto a chegar às forças de Franco auxílio material alemão em quantidade apreciável. Bernhardt havia de recordar anos mais tarde que Salazar interveio pessoalmente para que fossem carregados sem demora comboios contendo os fornecimentos alemães. O carregamento era feito por soldados portugueses sem uniforme, para não serem identificados.

Em breve passariam também a transitar por Portugal os combatentes alemães da Legião Condor, que iam intervir na guerra ao lado de Franco e que se tornariam tristemente famosos, por exemplo, no arrasamento de Guernica e no massacre da sua população civil. Sem preocupações de discrição, fotografias do diário "O Século" mostravam os aviadores alemães, vestidos à civil, a chegarem à estação de Santa Apolónia.

A fronteira portuguesa era guardada por forças montadas da GNR, que entregavam os refugiados republicanos à tropas "nacionais". O comandante da GNR, general Monteiro de Barros, tinha como genro um jovem oficial de Cavalaria, que participava nessas missões de patrulhamento fronteiriço e que mais tarde viria a ser, durante alguns meses, presidente da República: António Sebastião Ribeiro de Spínola.
Salazar, MNE de Burgos
A neutralidade perante a guerra civil espanhola, no tocante ao Governo de Salazar, durou pouco tempo. Quando se criou em Londres um Comité de Não-Intervenção, participavam nele as potências que mais se empenhavam em intervir: Itália e Alemanha. Representavam, por um lado, a farsa da neutralidade mas, com o apoio da "fronteira amiga" de Portugal, continuavam a fazer chegar às tropas de Franco um apoio decisivo.

Apesar de algumas precauções da camuflagem, o Governo de Lisboa assumiu desde mais cedo e mais abertamente do que o alemão ou o italiano a sua tomada de partido. Nos areópagos internacionais, em breve Salazar passou a ser visto como uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo "nacional" de Burgos, enquanto este não foi reconhecido pela maioria dos seus pares europeus.

Muito especialmente o facto de ter fracassado a ofensiva de quatro colunas "nacionais" sobre Madrid colocava um problema política delicado. Mesmo os governos europeus conservadores que estavam desejosos de reconhecer os sublevados dificilmente podiam fazê-lo enquanto a República continuasse a controlar a capital e enquanto o governo "nacional" continuasse sediado numa cidade tão secundária como Burgos.

Por isso mesmo, foi tão feroz a ofensiva das quatro colunas que marchavam sobre Madrid e da "quinta coluna" que os generais se ufanavam de ter na retaguarda republicana. Por isso mesmo chegou a parecer iminente a queda de Madrid no final de 1936. Ao mesmo tempo que se combatia sob o lema "No pasarán!", o governo republicano fugiu da capital para se instalar em Valencia. Na batalha da Cidade Universitaria, "rojos" e "nacionales" combatiam-se de porta a porta, ocupavam andares diferentes do mesmo edifício, mandavam uns aos outros granadas pelos elevadores.

Mas Madrid abandonada pelo governo não foi abandonada pelo povo nem pelos brigadistas internacionais, que aí fizeram a sua primeira irrupção espectacular no conflito. Entre os oficiais republicanos que se distinguiram na defesa da cidade, figuram alguns nomes portugueses - em primeiro lugar Francisco Oliveira Pio.

Em Lisboa, a Embaixada republicana, que se manteve durante as semanas iniciais da guerra civil, foi submetida a fortes pressões. O embaixador Claudio Sánchez-Albornoz (na foto) viu a sua família assediada e ameaçada, com constantes intimações para renunciar ao posto. Finalmente, ao serem cortadas as relações entre Lisboa e Madrid, Albornoz partiu para o exílio e refugiou-se em Bordéus.



Mais tarde, quando a Alemanha nazi invadiu a França, Albornoz teve de voltar a fugir e, na fuga, passou por Lisboa. Salazar permitiu-lhe nesse caso seguir viagem para o Norte de África, aparentemente pelo grande respeito intelectual que lhe inspirava Albornoz, como autoridade na História portuguesa. O antigo embaixador conseguiria  enfim obter asilo no México, onde encabeçou depois da Guerra o governo republicano no exílio.
Portugal dividido entre prórepublicanos e prófranquistas
Para além de Sebastião Ramires, destacava-se em Portugal no apoio aos fascistas espanhóis o nome de Jorge Botelho Moniz. Aos microfones do Rádio Clube Português, o capitão do Exército agitava a favor de Franco e, a partir de certa altura, apelava à participação de voluntários. Estes recebiam compensações e privilégios de vários tipos e, depois da guerra, foram beneficiados nas suas carreiras por esse curriculum de participação mercenária numa guerra em que Portugal não era oficialmente parte beligerante.

Mesmo assim, os portugueses recrutados para a tropa antirepublicana não atingiram nunca a massa crítica, em quantidade de efectivos e em qualidade de enquadramento, que lhes permitisse constituírem uma unidade própria. Permaneceram sempre dispersos por outras unidades franquistas, sob as ordens de comandos alheios.

A lenda dos "viriatos" é portanto um engendro da propaganda de guerra, para lustrar uma participação portuguesa completamente desproporcionada com o papel importante que desempenhava Portugal enquanto retaguarda logística e executor de subempreitadas diplomáticas. Os "viriatos" apenas existiram como unidade fabricada à pressa para o desfile da vitória.

Pelo contrário, o partido prórepublicano em Portugal lutava com dificuldades para fazer chegar o seu apoio a Espanha. Os combatentes, se vivessem em Portugal, tinham de passar a fronteira a salto. Também não constituíram uma unidade própria, mas alguns tiveram papel destacado, como vimos na defesa de Madrid.

Deu-se, por outro lado, no início de Setembro de 1936, a revolta dos marinheiros, que ocuparam três navios da Armada e com eles tentaram pôr-se ao largo, tendo como plano alternativo rumarem a um dos portos da República espanhola. Bombardeados pela artilharia de costa ainda antes de deixarem o Tejo, tiveram de render-se e, em grande parte, foram parar ao Tarrafal.

Dois atentados à bomba tiveram, por outro lado, estreita ligação com a guerra de Espanha: um contra o emissor do Rádio Clube Português; outro contra o próprio ditador, Oliveira Salazar, organizado pelo militante anarquista Emídio Santana.
Ambições anexionistas da Falange
Apesar dos serviços que prestou ao bando "nacional", Salazar não se enganava sobre o seu centralismo madrileno e iberista. O embaixador que colocou junto do governo de Burgos, Pedro Teotónio Pereira, era uma figura de relevo no regime do Estado Novo. A nomeação testemunhava a importância que Salazar atribuía a esse posto inicialmente informal.

Teotório Pereira desempenhou a sua missão com todos os sinais exteriores de entusiasmo pelo bando "nacional". Mas na correspondência que trocava com Salazar referia-se sempre a Franco, com desprezo, explicando os seus defeitos com estereótipos sobre o carácter "manhoso" e "somítico" dos galegos como ele. E depois viria a estender essas expressões de desprezo à pessoa de Nicolás Franco, o irmão do ditador, escolhido por este para embaixador em Lisboa.

E, para tudo ficar em família, era a Falange espanhola, dirigida pelo cunhado de Franco, Ramón Serrano Suñer, que fazia distribuir mapas da Península, representando-o como um Estado único com capital em Madrid. E a mesma Falange referia-se ao futuro como o tempo em que a Espanha restabeleceria a sua fronteira natural, a ocidente, até ao Atlântico.

Na verdade, não se tratava apenas de mapas e de retóricas, e não era só da Falange que provinham uns e outras. Em investigação muito recente, o historiador espanhol Manuel Ros Agudo divulgou os documentos, descobertos por si, e que dão conta dos planos detalhados que, logo em 1940, Franco desenvolveu para a operação militar de ocupação de Portugal, ao melhor estilo do Anschluss da Áustria pela Alemanha nazi. Salazar aliara-se na guerra civil ao bando que maior ameaça representava para Portugal como nação independente.
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