Paris, 03 jun (Lusa) -- De todas as distinções que recebeu na sua carreira, é a Ordem do Infante D. Henrique que mais comove Gérald Bloncourt, o fotógrafo que imortalizou os bairros de lata portugueses em França.
"Não estava à espera de uma tal distinção. Fiquei mesmo estupefacto e muito feliz porque de todas as condecorações que tive, foi esta que mais me emocionou, que mais me tocou. É o reconhecimento das imagens que fiz em solidariedade com o povo português e que fui transmitindo para denunciar a humilhação feita a um povo e as condições sórdidas nos bairros de lata", disse o fotógrafo à Lusa.
A 11 de junho, no dia em que vai receber a insígnia pelo Presidente da República em Champigny, a cidade onde outrora fotografou os "bidonville", o fotógrafo franco-haitiano, vai levar um cravo no chapéu como o que trouxe de Portugal depois de ter coberto o 1º de maio de 1974.
"A única palavra que conheço [em português] é obrigado. Obrigado ao povo português. É o meu povo. Tornei-me um português graças a toda esta aventura. É um povo digno, filho dos grandes descobridores. Uma civilização extraordinária", sublinhou o artista de de 89 anos.
Para Gérald Bloncourt o fotojornalismo é uma forma de militância depois de ter sido expulso do Haiti, no final dos anos 40, por razões políticas. Foi ao colaborar com jornais franceses de esquerda, como o "L`Humanité" e "La Vie Ouvrière", que descobriu os bairros de lata portugueses, nos arredores de Paris, a começar pelo de Champigny, onde foi confundido com um polícia na primeira noite de reportagem.
"Obrigaram-me a entrar numa barraca. Cá fora era só lama, lá dentro era pobre. Tirámos os sapatos e foram buscar o chefe do bairro. Quando chegou disse-me: "Que fazes aqui?!" Era um operário da Renault que eu conhecia bem. Deu-me um abraço, bebemos um porto e fui integrado", continuou.
Gérald Bloncourt quis ir mais longe e decidiu acompanhar os portugueses de perto e fazer com eles uma parte da chamada viagem "a salto", marcada por "enxurradas e as dificuldades em caminhar, com os sapatos a desgastar rapidamente".
"Conheci um dos passadores a quem paguei e que me deu um ponto de encontro em Espanha. Passámos de Espanha a França a pé, à noite. Por vezes, escondíamo-nos porque havia a guarda espanhola e a polícia francesa e era preciso esconder-se. Passámos mas de forma muito difícil porque estava muito frio. Eles não queriam ser fotografados porque eram clandestinos, mas ainda assim roubei algumas imagens e salvei algumas fotografias", contou.
Nessa altura, o fotojornalista foi também a Portugal para perceber as razões da emigração e regressou ao país para fotografar o primeiro de maio de 1974, tendo viajado no mesmo avião que Álvaro Cunhal.
"Eu estava em contacto com militantes portugueses que lutavam contra Salazar e avisaram-me quando houve esta famosa Revolução dos Cravos. Consegui arranjar um bilhete apesar de todos os voos terem sido tomados de assalto por toda a imprensa internacional que ia para Portugal. Cunhal estava lá com os seus camaradas e na viagem cantavam músicas revolucionárias, batiam com os pés no avião e a hospedeira veio avisá-los que o piloto ordenara que parassem porque iam fazer cair o avião!", descreveu.
As imagens do fotógrafo já integraram várias exposições em Portugal e França, fazendo parte do arquivo da Cité nationale de l`histoire de l`immigration, em Paris, e do Museu das Migrações e das Comunidades de Fafe.
O historiador Daniel Bastos, autor do livro "Gérald Bloncourt - O olhar de compromisso com os filhos dos Grandes Descobridores", sublinhou à Lusa que "o espólio do Gérald Bloncourt é um valioso repositório da história contemporânea portuguesa, em concreto do fenómeno da emigração portuguesa para França na década de 60".
"Ele conseguiu ser um espetador privilegiado e captou de forma singular o que foi o percurso de vida de mais de um milhão de portugueses nessas décadas em direção a França", resumiu o historiador, enumerando as fotografias dos "bidonvilles" em Paris, da viagem a salto além Pirinéus, da "vida no Portugal cinzento da década de 60 que levou os portugueses a emigrar, com a fome, a miséria, a perseguição política, a guerra colonial" e "as primeiras imagens da liberdade em Portugal no pós 25 de abril".
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